ICL: o discurso contra a sonegação e os negócios com quem acusa

Emerson Kapaz, presidente do Instituto Combustível Legal (ICL), fica sempre muito desconfortável com a citação de empresas mantenedoras do ICL envolvidas em irregularidades no setor de combustíveis

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O Instituto Combustível Legal (ICL) nasceu com a missão declarada de “construir um ambiente ético e leal no setor de combustíveis e combater o comércio irregular”. Mas os fatos recentes revelam que esse discurso parece não resistir quando se trata de interesses comerciais de seus próprios associados.

A própria história recente da Ipiranga, uma das gigantes que financia o ICL, ilustra bem essa contradição. Em 20 de dezembro de 2019, dentro da sede da companhia em São Paulo, a Ipiranga assinou 40 contratos com os irmãos Eduardo, Caio e Fábio Salomão — personagens até então irrelevantes no setor de combustíveis. O resultado: 110 milhões de reais saíram dos cofres da empresa, recursos captados pelo controlador Grupo Ultra em operações nas bolsas de São Paulo e Nova York. 

O objetivo era expandir e embandeirar a Rede S3, após a perda de liderança no mercado paulistano. Mas havia um problema: a própria Junta Comercial apontava que os Salomão não eram os verdadeiros donos das empresas. Em vez de respeitar a documentação oficial, a Ipiranga preferiu negociar com “sócios ocultos” por meio de contratos de gaveta — sócios que, segundo indícios da Justiça e da Receita Federal, tinham ligações suspeitas com o Primeiro Comando da Capital (PCC).

Não é um caso isolado. Desde 2020, o ICL acusa a Petrozil Distribuidora de Combustíveis de importar quase 500 mil m³ de gasolina e diesel sem recolher PIS/Cofins, acumulando uma dívida superior a R$ 320 milhões em tributos. Ainda assim, informações de bastidores apontam que empresas ligadas ao instituto adquiriram combustível da mesma Petrozil, ignorando as próprias denúncias feitas pela entidade. 

Ou seja: enquanto no discurso o ICL se apresenta como guardião da legalidade, na prática tolera que seus associados mantenham negócios com quem apontou como fraudador. Não se trata apenas de incoerência, mas da demonstração de que a bandeira contra a sonegação pode servir mais como instrumento de conveniência política e econômica do que como compromisso ético real.

A ligação incômoda com a Sefaz-SP

O caso se torna ainda mais grave quando se cruza com as denúncias da Coluna Esplanada, de Brasília, do jornalista Leandro Mazzini. Segundo relato, um servidor da Secretaria da Fazenda de São Paulo (Sefaz-SP) teria repassado informações fiscais sigilosas ao diretor do ICL, Carlos Faccio, antecipando operações contra empresas do setor. O episódio provocou mal-estar inclusive dentro do próprio instituto, com executivos comunicando áreas de compliance para avaliar os riscos.

Concidentemente ou não duas operações foram realizadas depois desse episódio: Operação Ícaro e Operação Carbono Oculto. A pergunta é inevitável: houve vazamento de informação sigilosa? Quem controla quem? A Fazenda paulista, que deveria ser autônoma no combate à sonegação, ou um instituto financiado por gigantes como  Ipiranga, Petrobras, Raízen e Vibra – todas interessadas diretamente em manter influência sobre o setor?

Para piorar, dados indicam que, entre 2023 e 2024, praticamente não houve saída de viaturas da fiscalização da Sefaz-SP às ruas para combater a sonegação no setor de combustíveis. A Ouvidoria da Sefaz-SP não se manifesta, mas se confirmado, isso comprova uma leniência grave do Estado diante de um dos mercados mais vulneráveis ao crime organizado.

Consultoria milionária e vínculos suspeitos

Outro ponto que levanta suspeitas é o pagamento de R$ 1,9 milhão feito pelo ICLà consultoria Brasilis Kaduma (BK Consult), entre 2021 e 2023, por “assessoramento técnico”. Essa empresa tem ligação societária com a KW Participações, que contou em seu conselho administrativo com um auditor fiscal de carreira da Sefaz-SP – profissional que já chegou ao mais alto posto da hierarquia no fisco paulista e em outro estado.

O que justifica quase R$ 2 milhões em pagamentos? Qual foi o serviço efetivamente prestado? E como se explica que empresas ligadas a um auditor fiscal de alto escalão tenham recebido justamente recursos de uma entidade que mantém relações privilegiadas com a própria Sefaz-SP?

O silêncio das autoridades

A omissão do governo paulista é gritante. O governador Tarcísio de Freitas, o secretário da Fazenda Samuel Kinoshita e o subsecretário Marcelo Bergamasco – este último envolvido em polêmica por exercer funções de alto escalão em home office diretamente de Milão, na Itália – precisam explicar à sociedade que relação é essa entre a Fazenda e o ICL.

Por que a Ouvidoria da Sefaz-SP não informa as visitas de representantes do instituto à secretaria? Por que não há registros claros das operações de fiscalização? E, sobretudo, por que se tolera que empresas associadas ao ICLfaçam negócios com uma distribuidora que o próprio instituto acusa de sonegação bilionária?

Se o Estado não responde a essas perguntas, reforça a percepção de que o combate à sonegação em São Paulo virou peça de marketing, enquanto as engrenagens do setor continuam operando sob a lógica da conveniência: condena-se em público, negocia-se em privado.

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