Ipiranga e os Irmãos Salomão: os 110 milhões e a face oculta da Ipiranga dentro do ICL

Sede da Ipiranga, em São Paulo, do Grupo Ultra, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, 1.343, no bairro da Bela Vista, onde foram assinados os contratos com os irmãos Salomão da Rede 3S

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No dia 20 de dezembro de 2019, dentro da sede da Ipiranga, em São Paulo, a companhia assinou 40 contratos com três personagens até então irrelevantes no setor de combustíveis: Eduardo Luiz Salomão, Caio Luiz Salomão e Fábio Luiz Salomão. Os irmãos, sem herança conhecida ou carreiras profissionais destacáveis, saíram da mesa de negociações com 110 milhões de reais nos bolsos – recursos captados pelo controlador Grupo Ultra (Ultrapar) em operações na bolsa brasileira e na Bolsa de Nova York (NYSE).

O negócio tinha como objetivo fomentar a compra e embandeiramento da Rede S3, em um momento em que a Ipiranga havia perdido a liderança no mercado paulistano. O problema: a própria Junta Comercial apontava que os irmãos Salomão não eram os verdadeiros donos das empresas. Em vez de respeitar a documentação oficial, a Ipiranga preferiu firmar contratos com “sócios ocultos” apresentados por meio de contratos de gaveta. Esses sócios, segundo indícios da Justiça e da Receita Federal, eram suspeitos de ligação com o Primeiro Comando da Capital – PCC.

Compliance seletivo e silêncio aos investidores

A diretoria e o setor de compliance da Ipiranga, pelas informações obtidas,tiveram papel central nessa transação. Foram eles que teriam exigido que os contratos fossem assinados com os Salomão – e não com os reais proprietários, cujos nomes estavam possivelmente vinculados ao crime organizado. A justificativa: preservar a imagem da companhia. Em outras palavras, podemos afirmar, tratava-se de uma operação consciente de blindagem reputacional, ainda que à custa da lei e do dever de transparência.

Para agravar o cenário, o Grupo Ultra (Ultrapar), holding controladora da Ipiranga, segundo dirigente da companhia jamais publicou Fato Relevante sobre a transação, descumprindo práticas básicas de governança exigidas. Os investidores possivelmente – no Brasil e nos EUA – foram mantidos no escuro sobre um negócio de 110 milhões com graves vícios.

Negócio viciado e ativos fantasmas

Parte dos contratos envolvia a venda de bombas, tanques e equipamentos de postos a operadores suspeitos de terem ligação com o PCC. Em outros casos, sequer havia fisicamente um posto de gasolina: algumas das empresas da Rede S3 não existiam de fato. 

O caso do Auto Posto S3 Juntas, em São Paulo, é emblemático. Em 2019, dentro da sede da Ipiranga, ele foi avaliado em R$ 3,5 milhões. Mas, em 2023, os irmãos Salomão o venderam por apenas R$ 300 mil a Ricardo Romano, investigado na Operação Carbono Oculto como um elemento com ligações comerciais com membros do PCC.

Como explicar a discrepância? Na calculadora da Ipiranga, o mesmo ativo valia dez vezes mais quando era preciso justificar a injeção milionária de recursos da companhia.

Do Instituto Combustível Legal ao escândalo prático

A contradição atinge proporções ainda mais graves quando se observa que a Ipiranga é integrante e financiadora do Instituto Combustível Legal – ICL, entidade que se apresenta como guardiã da ética e da lealdade no setor, com a missão explícita de combater fraudes. 

ICL reúne gigantes como Petrobras, Raízen, Vibra e Braskem. Seu CEO, Emerson Kapaz, comentou que a Ipiranga está desde 2019 na Justiça tentando reverter o negócio com os Salomão, mas alguns posto ainda continuam operando com a bandeira da companhia. Mas o fato é que o investimento foi feito, consumado e jamais devidamente explicado.

Se a Ipiranga, uma das colunas do ICL, despejou R$ 110 milhões em contratos suspeitos com operadores ocultos ligados possivelmente ao crime organizado, podemos confiar, indiscriminadamente, em um instituto que se apresenta como paladino da moralização do setor?

A omissão conveniente

Outra pergunta desconfortável persiste: por que a transação não foi citada de forma contundente na Operação Carbono Oculto, que investigou esquemas do PCC no setor de combustíveis? Considerando a estreita ligação entre o ICL e a Secretaria da Fazenda de São Paulo – SefazSP é legítimo questionar se houve blindagem política ou institucional para evitar que o escândalo viesse à tona?

Enquanto a Ouvidoria da Sefaz ignora pedidos de informação sobre visitas de representantes do ICL, como do Emerson Kapaz e do diretor Carlos Faccio à secretaria, a Ipiranga não deu, até hoje, explicações consistentes sobre essa transação. Mas os documentos de 2019 e as negociações com os irmãos Salomão estão aí: um retrato constrangedor de como o compliance pode ser usado não para prevenir crimes, mas para formalizá-los com verniz de legalidade.

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